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Interessante a observação de Perrenoud
sobre "reduzir-se ao mínimo" os saberes em competências. Todavia, muito mais importante do que os saberes e do que as
competências, há o comportamento moral. Nos dias de hoje, fala-se muito sobre "educação,
educação e educação", mas todos se esquecem que matemática e geografia não melhoram ou aprimoram o caráter ético e moral de uma
pessoa.
A escola joga a responsabilidade para a família, e a família acredita que estes valores estão sendo passados na escola. No fim, nem
saberes e nem competências têm feito a diferença, num mundo onde aparecem aberrações, advindas da classe social média, estudada, porém
imoral, que rouba, espanca, tortura e comete barbaridades que os saberes e competências não foram suficientes para se evitar.
Enfim, temos escolas para a indústria, geradora de proletários técnicos assalariados com o único e exclusivo objetivo de continuar
movimentando a economia financeira. Para isto servem os saberes e as competências. Mas para a vida social, o que importa é a
moralidade, esta que não se vê em nenhuma escola.
Construir competências é virar as costas aos saberes?
Philippe Perrenoud
Inúmeros países orientam-se para a redação de "bases de competências" associadas às principais etapas da escolaridade. No decorrer dos
anos noventa, a noção de competência inspirou uma reescritura mais ou menos radical dos programas no Quebec, na França e na Bélgica -
Na Suíça romanda, a questão começa a ser debatida, porque a revisão dos planos de estudos coordenados está na ordem do dia e,
simultaneamente, porque a evolução para os ciclos de aprendizagem exige a definição de objetivos-núcleos ou de objetivos de final de
cicio, freqüentemente concebidos em termos de competências.
Àqueles que pretendem que a escola deva desenvolver competências, os céticos opõem uma objeção clássica: isso não ocorre em detrimento
dos saberes? Não se corre o risco de reduzi-los ao mínimo, ao passo que a missão da escola é primeiramente instruir, transmitir
conhecimentos?
Essa oposição entre saberes e competências tem fundamento e é, ao mesmo tempo, injustificada:
* tem fundamento, porque não se pode desenvolver competências na escola sem limitar o tempo destinado à pura assimilação de saberes,
nem sem questionar sua organização em disciplinas fechadas;
* é injustificada porque a maioria das competências mobiliza certos saberes, ou seja, desenvolver competências não implica virar as
costas aos saberes, ao contrário.
O verdadeiro debate deveria se dar sobre as finalidades prioritárias da escola e sobre os equilíbrios a serem respeitados na redação e
na operacionalização dos programas.
A maioria dos conhecimentos acumulados na escola permanece inútil na vida cotidiana, não porque careça de pertinência, mas porque
os alunos não treinaram para utilizá-los em situações concretas.
Não há competências sem saberes.
Para alguns, a noção de competência remete a práticas do cotidiano, que mobilizam apenas saberes de senso comum, saberes de
experiência. Disso concluem que desenvolver competências desde a escola prejudicaria a aquisição dos saberes disciplinares que ela tem
a vocação de transmitir.
Tal caricatura da noção de competência permite a ironia fácil de dizer que não se vai à escola para aprender a fazer um anúncio
classificado, escolher um roteiro de férias, diagnosticar uma rubéola, preencher o formulário do imposto de renda, compreender um
contrato, redigir uma carta, fazer palavras cruzadas ou calcular um orçamento familiar. Ou então para obter informações por telefone,
encontrar o caminho numa cidade, repintar a cozinha, consertar uma bicicleta ou descobrir como utilizar uma moeda estrangeira.
Pode-se responder que se trata aqui de habilidades comuns que devem ser distinguidas das verdadeiras competências. Essa argumentação
não seria muito sólida: não se pode reservar as habilidades ao cotidiano e as competências às tarefas nobres. O uso habitua-nos
certamente a falar de habilidades para designar habilidades concretas, ao passo que a noção de competência parece mais ampla e mais
"intelectual". Na realidade, refere-se ao domínio prático de um tipo de tarefas e de situações. Não tentemos reabilitar a noção de
competência reservando-as às tarefas mais nobres.
Recusemos ao mesmo tempo o amalgama entre competências e tarefas práticas:
* Digamos primeiramente que as competências requeridas na vida cotidiana não são desprezíveis, pois uma parte dos adultos, mesmo entre
aqueles que seguiram uma escolaridade básica completa, permanece bem despreparada diante das tecnologias e das regras presentes na
vida cotidiana. Dessa forma, sem limitar o papel da escola a aprendizagens tão triviais, pode-se perguntar: de que adianta
escolarizar um indivíduo durante 10 a 15 anos de sua vida se ele continua despreparado diante de um contrato de seguro ou de uma bula
farmacêutica?
* As competências elementares evocadas não deixam de ter relação com os programas escolares e com os saberes disciplinares elas exigem
noções e conhecimentos de matemática, geografia, biologia, física, economia, psicologia, supõem um domínio da língua e das operações
matemáticas básicas; apelam para uma forma de cultura geral que também se adquire na escola. Mesmo quando a escolaridade não é
organizada para desenvolver tais competências que desenvolve-se fora da escola apela para saberes escolares básicos (a noção de mapa,
de moeda, de ângulo, de juro, de jornal, de roteiro, etc.) e para as habilidades fundamentais (ler, escrever, contar). Não há,
portanto, contradição obrigatória entre os programas escolares e as competências mais simples.
Enfim, estas últimas não esgotam a gama das competências humanas: a noção de competências remete a situações nas quais é preciso tomar
decisões e resolver problemas. Por que limitaríamos as decisões e os problemas, ou à esfera profissional, ou à vida cotidiana: As
competências são necessárias para escolher a melhor tradução de um texto em latim, levantar e resolver um problema com o auxílio de um
sistema de equações com várias incógnitas, verificar o princípio de Arquimedes, cultivar uma bactéria, identificar as premissas de uma
revolução ou calcular a data do próximo eclipse solar.
Uma competência mobiliza saberes.
Em resumo, é mais fecundo descrever e organizar a diversidade das competências do que debater para estabelecer uma distinção entre
habilidades e competências. Decidir se temperar um prato, apresentar condolências, reler um texto ou organizar uma festa são
habilidades ou competências teria sentido se isso remetesse a funcionamentos mentais muito diferentes. Mas não acontece dessa maneira.
Concreta ou abstrata, comum ou especializada, de acesso fácil ou difícil, uma competência permite afrontar regular e adequadamente uma
família de tarefas e de situações, apelando para noções, conhecimentos, informações, procedimentos, métodos, técnicas ou ainda a
outras competências, mais específicas. Le Boterf (1994) compara a competência a um "saber-mobilizar".
Possuir conhecimentos ou capacidades não significa ser competente. Pode-se conhecer técnicas ou regras de gestão contábil e não saber
aplicá-las no momento oportuno. Pode-se conhecer o direito comercial e redigir contratos mal escritos.
Desenvolver competências a partir da escola não é uma moda mas uni retorno às origens, às razões de ser da instituição escolar.
Todos os dias, a experiência mostra que pessoas que possuem conhecimentos ou capacidades, não sabem mobilizá-los de modo pertinente
e no momento oportuno, em uma situação de trabalho. A atualização daquilo que se sabe em um contexto singular (marcado por
relações de trabalho por uma cultura institucional, por eventualidades, imposições temporais, recursos... é reveladora da 'passagem' à
competência. Esta realiza-se na ação" (Le Boterf, 1997, p. 16).
Se a competência manifesta-se na ação, não é inventada na hora:
* se faltam os recursos a mobilizar, não há competência;
* se os recursos estão presentes, mas não são mobilizados em tempo útil e conscientemente, então, na prática, é como se eles não
existissem.
Freqüentemente evoca-se a transferência de conhecimentos, para ressaltar que não se opera muito bem: determinado estudante, que
dominava uma teoria na prova, revela-se incapaz de utilizá-la na prática, porque jamais foi treinado para fazê-lo. Hoje em dia
sabe-se que a transferência de conhecimentos não é automática, adquire-se por meio do exercício e de uma prática reflexiva, em
situações que possibilitam mobilizar saberes, transpô-los, combiná-los, inventar uma estratégia original a partir de recursos que não
a contém e não a ditam.
A mobilização exerce-se em situações complexas, que obrigam a estabelecer o problema antes de resolvê-lo, a determinar os
conhecimentos pertinentes, a reorganizá-los em função da situação, a extrapolar ou preencher as lacunas. Entre conhecer a noção de
juros e compreender a evolução da taxa hipotecária, há uma grande diferença. Os exercícios escolares clássicos permitem a consolidação
da noção e dos algoritmos de cálculo. Eles não trabalham a transferência. Para ir nesse sentido, seria necessário colocar-se em
situações complexas como obrigações, hipotecas, empréstimo, leasing. Não adianta colocar essas palavras nos dados de um problema de
matemática para que essas noções sejam compreendidas, ainda menos para que a mobilização dos conhecimentos seja exercida. Entre saber
o que é um vírus e proteger-se conscientemente das doenças virais, a diferença não é menor. Do mesmo modo que entre conhecer as leis
da física e construir uma barca, fazer um modelo reduzido voar, isolar uma casa ou instalar corretamente um interruptor.
A transferência é igualmente falha quando se trata de enfrentar situações em que importa compreender a problemática de um voto (por
exemplo, sobre a engenharia genética, a questão nuclear, o déficit orçamentário ou as normas de poluição), ou de uma decisão
financeira ou jurídica ( por exemplo, em matéria de naturalização, regime matrimonial, fiscalização, poupança, herança, aumento de
aluguel, acesso à propriedade, etc.).
Às vezes, faltam os conhecimentos básicos, principalmente no campo do direito ou da economia. Freqüentemente, as noções fundamentais
foram estudadas na escola, mas fora de qualquer contexto. Permanecem então "letras mortas", tais como capitais imobilizados por não se
saber investir neles conscientemente.
É por essa razão - e não por recusa aos saberes - que convém desenvolver competências a partir da escola, ou seja, relacionar
constantemente os saberes e sua operacionalização em situações complexas., Isso vale tanto para cada disciplina quanto para sua
inter-relação. Ora, isso não é evidente. A escolaridade funciona baseada numa espécie de "divisão do trabalho": à escola cabe fornecer
os recursos (saberes e habilidades básicos), à vida ou às habilitações profissionais cabe desenvolver competências. Essa divisão do
trabalho repousa sobre uma ficção. A maioria dos conhecimentos acumulados na escola permanece inútil na vida cotidiana, não porque
careça de pertinência, mas porque os alunos não treinaram para utilizá-los em situações concretas.
A escola sempre almejou que seus ensinamentos fossem úteis, mas freqüentemente acontece-lhe de perder de vista essa ambição global, de
se deixar levar por uma lógica de adição de saberes, levantando a hipótese otimista de que elas acabarão por servir a alguma coisa.
Desenvolver competências desde a escola não é uma moda nova, mas um retorno às origens, às razões de ser da instituição escolar.
Que competências privilegiar?
Se acreditamos que a formação de competências não é evidente e que depende em parte da escolaridade básica, resta decidir quais ela
deveria desenvolver prioritariamente. Ninguém pretende que todo saber deve ser aprendido na escola. Uma boa parte dos saberes humanos
é adquirida por outras vias. Por que seria diferente com as competências: Dizer que cabe à escola desenvolver competências não
significa confiar-lhe o monopólio disso.
A questão é tão antiga quanto a escola: Para quem são feitos os currículos?
Quais ela deve privilegiar? Aquelas que mobilizam fortemente os saberes escolares e disciplinares tradicionais, dirão imediatamente
aqueles que querem que nada mude, salvo as aparências. Se os programas prevêem o estudo da lei de Ohm, eles proporão acrescentar um
verbo de ação ("saber servir-se conscientemente da lei de Ohm") para definir uma competência. Para ir além do passe de mágica, é
indispensável explorar as relações entre competências e programas escolares atuais.
Uma parte dos saberes disciplinares ensinados na escola fora de qualquer contexto de ação será, sem dúvida, no final das contas,
mobilizada por competências. Ou, mais exatamente, sela servirá de base a aprofundamentos determinados no âmbito de certas formações
profissionais. O piloto ampliará seus conhecimentos geográficos e tecnológicos: a enfermeira, seus conhecimentos biológicos; o
técnico, seus conhecimentos físicos: a laboratorista, seus conhecimentos químicos, o guia, seus conhecimentos históricos, o
administrador, seus conhecimentos comerciais, etc. Da mesma maneira, professores e pesquisadores desenvolverão conhecimentos na
disciplina que escolheram ensinar ou desenvolver. As línguas e as matemáticas serão úteis em inúmeras profissões. Pode-se então dizer
que as competências são um horizonte, sobretudo para aqueles que se orientarem para profissões científicas e técnicas, servirem-se das
línguas em sua profissão ou fizerem pesquisa.
Muito bem, mas fora desses usos profissionais limitados a uma ou duas disciplinas básicas, às matemáticas e às línguas, de que lhes
servirão os outros conhecimentos acumulados durante sua escolaridade, se não aprenderam a utilizá-los para desenvolver problemas?
Pode-se responder que a escola é um lugar onde todos acumulam os conhecimentos de que alguns necessitarão mais tarde, em função de sua
orientação. Para contrabalançar, evocar-se-á a cultura geral da qual ninguém deve ser excluído e a necessidade de oferecer a cada um
chances de se tornar engenheiro, médico ou historiador. Em nome dessa "abertura", condena-se a maioria a adquirir saberes "a perder de
vista", "para se um dia..."
Em si, isso não seria dramático, ainda que o preço desse acúmulo de saberes fossem anos de vida passados nos bancos de uma escola. O
incômodo é que, assimilando intensivamente tantos saberes, não se tem tempo de aprender a servir-se deles, e futuramente ter-se-á
necessidade disso na vida cotidiana, familiar, associativa, política. Assim, aqueles que tiverem estudado biologia na escola
obrigatória ficarão expostos à transmissão da AIDS, aqueles que estudaram física sem ir além da escola continuarão sem compreender as
tecnologias que os cercam, aqueles que estudaram geografia ainda terão dificuldade para ler um mapa ou para localizar o Afeganistão,
aqueles que aprenderam geometria não saberão desenhar um plano em escala, aqueles que passaram horas aprendendo línguas continuarão
incapazes de indicar o caminho a um turista estrangeiro.
O acúmulo de saberes descontextualizados não serve realmente senão àqueles que tiverem o privilégio de aprofundá-los durante longos
estudos ou uma formação profissional, contextualizando alguns deles e se exercitando para utilizá-los na resolução de problemas e na
tomada de decisões. É essa fatalidade que a abordagem por competências questiona, em nome dos interesses da grande maioria.
Assumir o reverso da medalha
Toda escolha coerente tem seu reverso: o desenvolvimento de competências desde a escola implicaria uma diminuição dos programas
nacionais, com vistas a liberar o tempo requerido para exercer a transferência e acarretar a mobilização dos saberes.
Isso é grafe? É realmente necessário que, na escola obrigatória, aprenda-se o máximo de matemática, de física, de biologia para que os
programas pós-obrigatórios possam ir ainda mais longe? Diminuir programas e trabalhar um número mais limitado de noções disciplinares,
para levar à sua operacionalização, não prejudicaria muito aqueles que fizeram estudos especializados nos domínios correspondentes,
mas daria melhores chances a todos os outros. Não somente àqueles que deixarão a escola aos 15 anos, cujo número diminui nas
sociedades desenvolvidas, mas àqueles que, com um doutorado em história, nada compreendem de energia nuclear, enquanto que os
engenheiros de mesmo nível permanecem igualmente perplexos diante das evoluções culturais e políticas do planeta.
A questão é tão antiga quanto a escola: para quem são feitos os currículos? Como sempre, os favorecidos desejarão sê-lo ainda mais e
dar a seus filhos, destinados aos estudos aprofundados, melhores chances na seleção. Infelizmente, isso será em detrimento daqueles
para os quais a escola não desempenha hoje seu papel essencial: oferecer ferramentas para dominar a vida e compreender o mundo.
Outras resistências se manifestam, vindas do interior. A abordagem por competências choca-se com a relação do saber de uma parcela dos
professores, também sendo necessário considerar uma evolução sensível das pedagogias e dos modos de avaliação (Perrenoud, 1998).
Construir competências desde o início da escolaridade não afasta-se ultrapassarmos os mal-entendidos e os julgamentos mordazes das
finalidades fundamentais da escola, bem ao contrário. Em compensação, isso passaria por uma transformação significativa de seu
funcionamento.
Dar-se-á nesse âmbito uma atenção prioritária àqueles que não aprendem sozinhos! Os jovens que fazem estudos aprofundados acumulam
saberes e constroem competências. Não é para eles que se deve mudar a escola, mas para aqueles que, ainda hoje, dela saem desprovidos
das numerosas competências indispensáveis para viver no final do século XX.
A trilogia das habilidades - ler, escrever, contar - que fundou a escolaridade obrigatória no século XIX não está mais à altura das
exigências de nossa épóca. A abordagem por competências busca simplesmente atualizá-la.
Philippe Perrenoud é psicólogo e professor na Faculdade de Psicologia de Ciências da Educação da Universidade de Genebra.
Este artigo foi buplicado originalmente em Résonances, Mensuel de 1'école valaisanne, n. 3 Dossier Savoirs et compétences, novembre
1998, pp. 3-7.
PERRENOUD, P. Pedagogia diferenciada: das intenções à ação. Porto Alegre ARTMED, 2000.
PERRENOILID, P Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: ARTMED, 1999.
PERRENOUD, P Avaliação da excelência à regulação das aprendizagens entre duas lógicas. Porto Alegre: ARTMED, 1999.
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