OLIVEIRA, Marta Kohl. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento; um processo sócio-histórico.
São Paulo: Scipione, 1993.

Os fundamentos culturais e sociais do desenvolvimento cognitivo:
a pesquisa intercultural na Ásia Central

O livro Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais, (20), em que essa pesquisa intelectual é relatada, foi publicado na União Soviética em 1974, mais de quarenta anos depois de sua conclusão. Nos Estados Unidos, foi publicado em 1976 e, em 1990, no Brasil. Na coletânea Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, (3), também há um artigo de Luria intitulado “Diferenças culturais de pensamento”, que resume os resultados dessa pesquisa.

Além de ter se dedicado ao estudo das funções psicológicas, no nível da organização cerebral, Luria também foi quem, entre os colaboradores de Vygotsky, desenvolveu a pesquisa de maior alcance sobre a questão das diferenças culturais. Com o objetivo de estudar como os processos psicológicos superiores são construídos em diferentes contextos culturais, Luria conduziu um extenso trabalho de campo sobre o funcionamento psicológico de moradores de vilarejos e áreas rurais de uma região remota e pouco desenvolvida da Ásia Central. Vygotsky não participou diretamente desse trabalho, por encontrar-se já bastante doente.

A região em que o estudo foi realizado (Usbequistão e Quirguistão) situa-se na Ásia Central, próxima à fronteira com o Afeganistão. Essa era uma região bastante isolada, estagnada economicamente, com alto grau de analfabetismo, predominância da religião muçulmana e do trabalho rural em propriedades individuais e isoladas. Na época em que o trabalho de campo foi realizado (1931-1932), a região estava sofrendo um processo de rápidas transformações sociais, com a implantação de fazendas coletivas, mecanização da agricultura e escolarização da população. Esse período de transformações propiciava uma oportunidade privilegiada para a observação das relações entre vida social e processos psicológicos, tão importante na construção de uma psicologia histórico-cultural. A pergunta fundamental que Luria fez foi: o que acontece com os indivíduos que passam por essas transformações sociais, em termos de seu funcionamento intelectual? Diferentes indivíduos, com vários graus de escolarização e de inserção no trabalho mais moderno das fazendas coletivas, foram incluídos na pesquisa, para permitir a comparação de seu desempenho em diversos tipos de tarefas psicológicas.

Luria e o grupo de pesquisadores que o acompanhou procuraram relacionar-se com os moradores da região estudada, convivendo com eles nos ambientes de sua vida cotidiana, antes de começarem o trabalho propriamente dito. Depois os dados de pesquisa foram coletados em longas entrevistas nas quais eram apresentadas tarefas para serem resolvidas pelo entrevistado. O experimentador registrava as respostas dadas e provocava os sujeitos com novas perguntas para obter, de um mesmo indivíduo, outras reflexões e outras possibilidades de raciocínio.

Conforme vimos no capítulo 4, a metodologia de pesquisa utilizada por Luria é de extrema contemporaneidade: a imersão do pesquisador no contexto da pesquisa, a entrevista longa e não estruturada, a intervenção do pesquisador para provocar comportamentos relevantes a serem observados são estratégias muito utilizadas e valorizadas na pesquisa atual em ciências humanas.

Vários tipos de tarefas foram utilizadas ao longo das entrevistas: tarefas de percepção (nomeação e agrupamento de cores, nomeação e agrupamento de figuras geométricas, resposta a ilusões visuais); de abstração e generalização (comparação, discriminação e agrupamento de objetos, definição de conceitos); de dedução e inferência (estabelecimento de conclusões lógicas a partir de informações dadas); de solução de problemas matemáticos a partir de situações hipotéticas apresentadas oralmente; de imaginação (elaboração de perguntas ao experimentador); de auto-análise (avaliação de suas próprias características).

Em todas as tarefas apresentadas, os resultados obtidos apontaram para uma mesma direção: houve alterações fundamentais na atividade psicológica acompanhando o processo de alfabetização e escolarização e as mudanças nas formas básicas de trabalho. Isto é, os sujeitos mais escolarizados e mais envolvidos em situações de trabalho coletivo exibiram um comportamento mais sofisticado do que os analfabetos e os camponeses que trabalhavam individualmente. Vamos apresentar aqui apenas alguns resultados específicos, como exemplo dos tipos de respostas dadas às tarefas utilizadas na pesquisa.

Em uma das tarefas de classificação foram apresentados desenhos de quatro objetos, sendo três pertencentes a uma categoria e o quarto a outra categoria (por exemplo, “martelo”, “serra”, “machadinha”, todos ferramentas, e “tora de madeira”, o único objeto que não pertencia à categoria das ferramentas). Perguntava-se ao entrevistado quais eram os três objetos semelhantes, que poderiam ser colocados num mesmo grupo, e qual o que não pertencia a esse grupo. Os mais escolarizados e inseridos em situações de trabalho mais modernizadas tendiam a colocar as três ferramentas juntas e indicar a tora de madeira como o único objeto diferente. Já os analfabetos e que trabalhavam como camponeses isolados não faziam esse tipo de classificação dos objetos. Diziam que os quatro objetos deviam ser colocados juntos, porque o serrote serra a tora, a machadinha corta a tora e precisamos da madeira para pregar alguma coisa com o martelo: todos os objetos são usados juntos e nenhum deles pode ser separado.

Em uma variação da mesma tarefa, apresentava-se um conjunto de desenhos de três objetos que pertenciam a uma mesma categoria (por exemplo, “árvore”, “flor” e “espiga”, todos vegetais) e pedia-se aos sujeitos que selecionassem um quarto objeto adequado, de um grupo de dois ou três outros desenhos (“roseira” e “pássaro”, por exemplo). Novamente os mais escolarizados e modernizados tendiam a selecionar o objeto pertencente à mesma categoria que os outros três (“roseira”, no exemplo citado). Os analfabetos e camponeses isolados tendiam a fazer outro tipo de relação entre os objetos, selecionando, por exemplo, o pássaro para compor o conjunto: [LURIA, p. 99, (20).>] “... a andorinha. Há uma árvore aqui e uma flor – é um lugar bonito. A andorinha vai sentar aqui e cantar”.

Nesta tarefa era utilizado o silogismo, um tipo de dedução lógica: de duas proposições chamadas premissas, é possível extrair uma conclusão lógica. Por exemplo:

Premissas:
1 – Todo homem é mortal.
2 – Pedro é homem.
Conclusão: Pedro é mortal.

Em outro tipo de tarefa, pedia-se aos sujeitos que chegassem a uma conclusão com base em informações dadas pelo experimentador. O experimentador informava, por exemplo, que “No norte, onde há neve, todos os ursos são brancos” e que “Novaya Zemlya fica no norte e lá sempre neva”. A seguir perguntava: “De que cor são os ursos em Novaya Zemlya?”. A conclusão lógica a partir das duas informações básicas é a de que os ursos em Novaya Zemlya são brancos. Essa era a conclusão apresentada pelos sujeitos mais escolarizados e que trabalhavam em fazendas coletivas. Já os menos escolarizados e que trabalhavam como camponeses isolados tinham dificuldade com esse raciocínio abstrato, baseando suas respostas em experiências pessoais e negando-se a fazer inferências sobre fatos não vivenciados: [LURIA, p. 148. (20).] “Eu não sei de que cor são os ursos lá. Eu nuca os vi”.

Tarefa de percepção utilizada por Luria
Figuras apresentadas aos sujeitos para serem agrupadas e nomeadas:

Exemplos de agrupamentos de figuras realizados por camponeses pouco escolarizados e a justificativa que eles deram para agruparem desse modo:

“Molduras de janelas”

“Relógios”

“Estes são parecidos – isto é uma gaiola e esta é a gaveta de alimentação através da gaiola.”

“Este é um pequeno balde para leite coalhado, e esta é uma panela para o creme.”

Nas demais tarefas utilizadas nesse estudo as diferenças observadas entre os grupos de sujeitos apontavam sempre na mesma direção: “mudanças nas formas práticas de atividade, e especialmente a reorganização da atividade baseada na escolaridade forma, produziram alterações qualitativas nos processos de pensamento dos indivíduos estudados”. Baseado nas proposições teóricas de Vygotsky, Luria identificou dois modos básicos de pensamento que caracterizam essas alterações qualitativas associadas às transformações sociais ocorridas na região estudada: o modo gráfico-funcional e o modo categorial. Esses dois modos de pensamento estavam presentes, como um contraste entre os diferentes grupos de sujeitos, em todas as tarefas incluídas nesse estudo intercultural.

O modo chamado gráfico-funcional refere-se ao pensamento baseado na experiência individual, em contextos concretos, em situações reais vivenciadas pelo sujeito. É chamado “gráfico” no sentido de que se baseia em configurações perceptuais, presentes no campo da experiência do sujeito 0 como no caso das figuras

que “se parecem porque ambas têm pontinhos”, sem que sejam feitas relações entre as figuras e as categorias mais abstratas de quadrados e triângulos. É chamado “funcional” porque refere-se às relações concretas entre os objetos, inseridos em situações práticas de uso – como no caso da tora de madeira classificada como o serrote porque o serrote serra a tora.

O modo de pensamento chamado categoria refere-se ao pensamento baseado em categorias abstratas, à capacidade de lidar com atributos genéricos dos objetos, sem referência aos contextos práticos em que o sujeito se relaciona concretamente com os objetos, sem referência aos contextos práticos em que o sujeito se relaciona concretamente com os objetos. O indivíduo que funciona psicologicamente de forma categorial é capaz de desvincular-se das situações concretas e trabalhar com objetos de forma descontextualizada. Assim, por exemplo, independentemente do uso conjunto que o sujeito faça do serrote e da tora de madeira, ele é capaz de classificar esses objetos em dois grupos diferentes: ferramentas e não ferramentas. Do mesmo modo, é capaz de concluir, a partir de informações verbais, que em Novaya Zemlya os ursos são brancos, mesmo que nunca tenha estado lá, ou nunca tenha visto os tais ursos.

Novaya Zemlya é também chamada Nova Zembla, em português.

Conforme mencionado anteriormente, os indivíduos mais escolarizados e com um tipo de trabalho mais modernizado é que tendiam a comportar-se de modo categorial. É interessante observar que alguns sujeitos, principalmente aqueles com pequeno grau de escolaridade e uma atividade profissional intermediária entre formas mais tradicionais e formas modernas, apresentavam um desempenho “em transição” nas tarefas psicológicas utilizadas neste estudo. Isto é, ora comportavam-se de modo categorial, ora apresentavam um raciocínio mais preso a situações concretas e à experiência pessoal.

Com esses indivíduos, Luria pôde observar claramente o papel da intervenção do pesquisador na zona de desenvolvimento proximal. Luria freqüentemente provocava a reflexão dos entrevistados contrapondo à resposta deles uma resposta dada por uma pessoa hipotética (“Mas uma pessoa me disse que uma dessas coisas não pertence a esse grupo”, por exemplo) ou fazendo um questionamento explícito da resposta do sujeito (“Está certo, mas um martelo, uma serra e uma machadinha são todos ferramentas”). Para aqueles sujeitos “em transição” essa intervenção ativa do pesquisador muitas vezes resultava numa transformação do seu modo de pensamento: ao longo da realização da tarefa o indivíduo passava do modo gráfico-funcional ao categorial. Essa transformação não acontecia com os que raciocinavam, consistentemente, de modo gráfico-funcional. Parece, justamente, que a interferência externa provoca transformação visível apenas quando o novo modo de pensamento já está presente, “em semente”, no próprio sujeito. Esta é exatamente a idéia da intervenção na zona de desenvolvimento proximal e da promoção de processos de desenvolvimento a partir de situações de interação social.

As relações entre as diferenças no modo de funcionamento intelectual e as transformações no modo de vida são bastante evidentes no que se refere ao processo de escolarização formal. A escola é uma instituição social onde o conhecimento é objeto privilegiado da atenção dos indivíduos, sem conexão imediata com situações de vida real. Os sujeitos que passam pela escola acostumam-se a trabalhar com idéias e conceitos de forma descontextualizada, sem referência ao domínio do concreto. As ciências, cujo conhecimento acumulado é transmitido na escola, constroem, ao longo de sua história, modos do organizar o real justamente de forma categorial.

No que se refere aos processos de modernização no trabalho, particularmente de implantação das fazendas coletivas no caso da região estudada por Luria, esses envolvem o planejamento de ações coletivas, a tomada de decisões com base em critérios que ultrapassam as necessidades e motivações individuais, a substituição daquilo que é circunstancial e particular pelo que é previsível, geral e compartilhado. Essas características do modo de trabalho parecem propiciar a emergência de novas formas de funcionamento intelectual.

É importante mencionar que as relações entre contextos culturais e processos psicológicos superiores, estudadas por Luria neste amplo projeto de investigação, são, ainda hoje, objeto de grande controvérsia na área da psicologia. Por um lado a psicologia tradicional não leva em conta as relações entre cultura e pensamento, buscando a compreensão do funcionamento psicológico como um fenômeno universal. Estudos como o de Luria, por outro lado, constroem uma diferenciação entre modos de funcionamento intelectual que, ao romper com a universalidade dos processos psicológicos, podem levar a uma valorização de um dos modos de funcionamento como sendo o mais sofisticado, mais complexo, mais adequado. Como o referencial privilegiado da psicologia é a sociedade urbana, moderna, escolarizada, com desenvolvimento científico e tecnológico, o modo de funcionamento psicológico associado a esse tipo de inserção do homem no mundo tende a ser tomado como o modo mais avançado.

Michael Cole, um dos principais estudiosos contemporâneos das relações entre cultura e pensamento, manifesta sua preocupação com essa questão no prólogo à obra de Luria: [COLE. p. 15-16 (7).] “Seu objetivo geral era mostrar as raízes sócio históricas de todos os processos cognitivos básicos; a estrutura de pensamento depende da estrutura dos tipos de atividades dominantes em diferentes culturas. Desse conjunto de premissas, segue-se que o pensamento prático vai predominar em sociedades caracterizadas pela manipulação prática de objetos e que formas mais ‘abstratas’ de atividade ‘teórica’ em sociedades tecnológicas vão induzir a pensamentos mais abstratos, teóricos. O paralelo entre o desenvolvimento social e individual produz uma forte tendência à interpretação de todas as diferenças comportamentais em termos de desenvolvimento. [...] Minha interpretação pessoal desse tipo de dados é um pouco distinta, uma vez que sou um tanto cético quanto à utilidade da aplicação de teorias do desenvolvimento em estudos comparativos de culturas. Assim, aquilo que Luria interpreta como aquisição de novos modos de pensamento, tenho tendência a interpretar como mudanças na aplicação de modos previamente disponíveis aos problemas particulares e contextos do discurso representados pela situação experimental. Entretanto, o valor desse livro não depende da nossa interpretação dos resultados de Luria. Como ele enfatiza em diversas passagens, o texto representa um projeto-piloto ampliado que jamais poderá ser repetido. Será tarefa de outros pesquisadores, trabalhando naquelas partes do mundo em que ainda existem sociedades tradicionais, aperfeiçoar a interpretação desses achados”.

 

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