Liberdade em Ação

(Capítulo Seis) 

SAVATER, Fernando. A Liberdade em Ação. In: As perguntas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.103-122.

O homem habita no mundo. “Habitar” não é o mesmo que estar incluído no repertório de seres que há no mundo, não é simplesmente estar “dentro” do mundo como um par de sapatos está dentro de sua caixa nem ter um mundo biológico próprio como o morcego ou qualquer outro animal. Para nós, humanos, o mundo não é simplesmente a trama total dos efeitos e causas, mas a palestra cheia de significado (…)

(…) o que significa “atuar”?, o que é uma ação humana e como ela se diferencia de outros movimentos que os outros seres fazem, assim como de outros gestos que também nós, humanos, fazemos?, não será uma ilusão ou um preconceito imaginar que somos capazes de verdadeiras ações e não de simples reações diante do que nos rodeia, nos influencia e nos constitui?

Suponhamos que eu tenha tomado um trem e comprado o bilhete correspondente. Durante o trajeto, estou distraído, pensando em minhas coisas, e sem me dar conta vou brincando com o pedacinho de papelão, que eu enrolo e desenrolo, até jogá-lo descuidadamente pela janela. Então aparece o fiscal e me pede o bilhete: desolação! E, provavelmente, multa. Só posso murmurar, para me desculpar: “Eu o joguei fora… sem me dar conta.” O fiscal, que também é um pouco filósofo, comenta: “Bem, se não estava se dando conta do que fazia, também não se pode dizer que o jogou fora. É como se o tivesse deixado cair.” Mas não estou disposto a aceitar esse álibi. “Desculpe, mas uma coisa é deixar o bilhete cair, outra é jogá-lo fora, mesmo que o tenha feito inadvertidamente.” O fiscal parece achar mais divertido discutir do que me aplicar a multa: “Veja bem, ‘jogar’ o bilhete é uma ação, algo diferente de deixar cair, que é só uma dessas coisas que acontecem. Quando alguém faz uma ação é porque quer fazê-la, não é mesmo? Em contrapartida, as coisas acontecem sem a gente querer. De modo que, como o senhor não queria jogar fora o bilhete, podemos dizer que na verdade o deixou cair.” Eu me rebelo contra essa interpretação mecanicista: “De jeito nenhum! Poderíamos dizer que deixei o bilhete cair se eu tivesse adormecido, por exemplo. Ou então se uma rajada de vento o tivesse arrancado da minha mão. Mas eu estava bem acordado, não havia vento e o que aconteceu foi que eu joguei o bilhete sem intenção.” “Ahá!”, diz o fiscal, batendo com o lápis em seu bloquinho, “se não tinha intenção, como sabe então que foi o senhor, exatamente o senhor, quem jogou fora? Porque ‘jogar’ uma coisa é fazer algo, e ninguém pode fazer algo se não se propõe fazê-lo.” “Pois sabe de uma coisa? Joguei a droga do bilhete fora porque me deu vontade!” Multa na certa.

A verdade é que há uma diferença entre o que simplesmente me acontece (esbarro a mão num copo e o derrubo na mesa quando vou pegar o sal), o que faço sem me dar conta e sem querer (o tal bilhete jogado pela janela!), o que faço sem me dar conta mas conforme uma rotina adquirida voluntariamente (enfiar os pés no chinelo ao me levantar da cama meio adormecido) e o que faço me dando conta e querendo (jogar o fiscal pela janela para que ele vá buscar o maldito bilhete). Parece que a palavra “ação” é um termo que só convém à última dessas possibilidades. Claro que também há outros gestos difíceis de classificar, mas que sem dúvida parecem qualquer coisa menos “ações”: por exemplo, fechar os olhos e levantar os braços quando alguém me atira alguma coisa no rosto ou procurar um apoio quando estou caindo. Não, decididamente uma “ação” é só o que eu não teria feito se não quisesse fazê-lo: chamo de ação um ato voluntário. O “falecido” fiscal, portanto, tinha razão…

Como saber, no entanto, se um ato é voluntário ou não? Por que, antes de realizá-lo, talvez eu delibere entre várias possibilidades e finalmente me decida por uma delas. Claro que não é o mesmo “decidir fazer alguma coisa” e “fazê-la”. “Decidir” é pôr fim a uma deliberação mental sobre o que eu realmente quero fazer. Porém, uma vez decidido, ainda tenho que fazê-lo. O que decido é o objetivo ou fim de minha ação, mas talvez não a própria ação. Por exemplo: decido pegar o copo e estico o braço para pegá-lo. O que eu realmente decidi fazer: pegar o copo ou esticar o braço? Minha deliberação teve a ver com o copo ou com meu braço? Se eu estico o braço e derrubo o copo, posso dizer que atuei ou não? Ou atuei “pela metade”?

A noção de “voluntário” também não é tão clara como parece. Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles imagina o caso de um capitão de navio que deve levar uma certa carga de um porto para outro. No meio da travessia despenca uma enorme tempestade. O capitão chega à conclusão de que só pode salvar o barco e a vida de seus tripulantes se jogar a carga pela borda para equilibrar a embarcação. De modo que ele a joga na água. Pois bem, ele a jogou porque quis? É evidente que sim, pois poderia não se ter livrado dela e arriscar-se a morrer. Mas é evidente que não, pois o que ele queria era levá-la até seu destino final, caso contrário teria ficado sossegado em casa, sem zarpar! De modo que a jogou querendo… mas sem querer. Não podemos dizer que a tenha jogado involuntariamente, nem que jogá-la fosse sua vontade. Às vezes poder-se-ia dizer que atuamos voluntariamente… contra a nossa vontade.

(…) “fiz voluntariamente tal ou tal coisa” significa: sem minha permissão, tal ou tal coisa não teria acontecido. É ação minha tudo o que não aconteceria se eu não quisesse que acontecesse. A essa possibilidade de fazer ou de não fazer, de dar o “sim” ou o “não” a certos atos que dependem de mim, é o que podemos chamar de liberdade. E é claro que, chegando à liberdade, não resolvemos todos os nossos problemas, mas tropeçamos em indagações mais difíceis ainda.

Seja como for, porque é tão importante para nós a questão da liberdade, seja para afirmá-la como arroubo entusiasmado e orgulhoso, seja para negá-la com não menor energia? O céptico David Hume, que era fundamentalmente determinista, sustentou que a idéia de liberdade é compatível com o determinismo porque não se refere à casualidade física mas à casualidade social. Temos necessidade de acreditar em certa medida na liberdade para poder atribuir cada um dos acontecimentos protagonizados por humanos a um sujeito responsável, que possa ser elogiado ou censurado – e castigado, se for o caso – por sua ação. A liberdade é imprescindível para estabelecer responsabilidades, porque sem responsabilidade não se pode articular a conveniência em nenhum tipo de sociedade. Mas esse ser livre não só é um motivo de orgulho como também de soçobra e até de angústia. Assumir nossa liberdade supõe aceitar nossa responsabilidade pelo que fazemos, inclusive pelo que tentamos fazer ou por algumas conseqüências indesejáveis de nossos atos.

Ser livre não é responder vitorioso “fui eu!” na hora da distribuição de prêmios, mas é também admitir “fui eu!” quando se procura o culpado por um malfeito. Para o primeiro sempre há voluntários, porém no segundo caso o mais comum é refugiar-se no peso esmagador das circunstâncias: o trapaceador de viúvas atribuirá seus delitos ao abandono precoce dos pais, às tentações da sociedade de consumo ou aos maus exemplos da televisão… ao passo que quem recebe o prêmio Nobel só falará de seu esforço diante do destino adverso e de seus méritos. Ninguém quer ser simplesmente reduzido ao catálogo de suas más ações: a quem nos repreende por uma grosseria, respondemos “não pude evitar, queira ver você no meu lugar, eu não sou assim, etc.”, tentando ao mesmo tempo transferir a culpa para a sociedade em que vivemos ou para o sistema capitalista, porém mantendo aberta a possibilidade de sermos limpos, desinteressados, valentes, melhores. Por isso a liberdade não é algo como um galardão, mas também uma carga, e muitas pessoas duvidosamente maduras – ou seja, pouco autônomas, pouco conscientes de si mesmas – preferem renunciar a ela e passá-la para um líder social que ao mesmo tempo tome as decisões e carregue o peso das culpas. (…)

Mas a questão da “responsabilidade” provém de muito antes. Na tragédia grega, por exemplo, a responsabilidade se transforma às vezes no destino inevitável do personagem, que – como acontece com Édipo nas tragédias de Sófocles Édipo rei e Édipo em Colona – tem que cumprir, mesmo sem querer nem saber, as ações à que está predestinado, mas ao mesmo tempo sem deixar de compreender os dispositivos voluntários que o enredam na máquina fatal. Nosso querer nos arrasta ao irremediável, mas depois o irremediável deve ser assumido como a parte cega de nosso querer: aceitar que devíamos ser culpados nos abre os olhos sobre o que somos e assim purifica o que podemos vir a ser. Os gregos não conheceram a noção de “liberdade” no segundo¹ e no terceiro² sentidos, portanto também não tiveram uma noção de responsabilidade realmente “personalizada”, ou seja, ligada à intenção subjetiva do agente e não à objetividade do fato realizado. A maldição do culpado recai sobre Édipo por crimes que ele ignora ter cometido (matar o pai, deitar-se com a mãe) e que depois deve assumir como parte do destino que lhe pertence… e ao qual ele pertence. Segundo Sófocles, o que nos torna responsáveis não é o que projetamos fazer nem o que fazemos efetivamente, e sim a reflexão sobre o que fizemos.

(…) Shakespeare – quem melhor esmiuçou os segredos contraditórios da liberdade em ação. (…) Macbeth, quando vacila na noite atroz antes de assassinar o rei Duncan, ponderando abalado a responsabilidade inevitável que cairá sobre ele. (…) Se o assassinato solucionasse todas as conseqüências e com sua cessação o êxito estivesse assegurado! (…) Mas neste caso somos julgados aqui mesmo; (…) Macbeth quer a ação (o assassínio de Duncan) e quer o que irá conseguir por meio dessa ação (o trono), mas não quer ficar vinculado para sempre à ação, ter que se responsabilizar por ela diante dos que lhe peçam prestação de contas ou extraiam a lição terrível de seu crime. Se apenas se tratasse de fazê-lo e isso fosse tudo, ele o faria sem escrúpulos; mas a responsabilidade é a contrapartida necessária da liberdade, seu avesso, talvez o próprio fundamento da exigência de liberdade: as ações devem ser livres para que alguém responda por cada uma delas. O sujeito é livre para fazê-las, embora não para desprender-se de suas conseqüências…

Sófocles ou Shakespeare costumam falar de  uma responsabilidade “culpada” e não simplesmente por gosto sensacionalista: o vínculo entre liberdade e responsabilidade torna-se mais evidente quando a primeira nos apetece e a segunda nos assusta. Ou seja, quando estamos diante de uma tentação. Em nossa época, são abundantes as teorias que pretendem nos desculpar do peso responsável da liberdade quando nos é fastidioso: o mérito positivo de minhas ações é meu, mas minha culpa eu posso dividir com meus pais, com a genética, com a educação recebida, com a situação histórica, com o sistema econômico, com qualquer uma das circunstâncias que não está em minhas mãos controlar. Todos nós somos culpados de tudo, logo ninguém é principal culpado de nada. Em minhas aluas de ética costumo colocar o seguinte caso prático, que adorno conforme a inspiração do dia. Suponhamos uma mulher cujo marido empreende uma longa viagem; a mulher aproveita essa ausência para ir ao encontro de um amante; de um dia para outro, o marido desconfiado anuncia sua volta e exige a presença da esposa no aeroporto para recebê-lo. Para chegar ao aeroporto, a mulher precisa atravessar um bosque onde se esconde um terrível assassino. Assustada, ela pede ao amante que a acompanhe, mas ele se nega, pois não quer enfrentar o marido; então pede proteção ao único guarda que há no povoado, que também diz que não pode ir com ela, pois deve atender com o mesmo zelo aos outros cidadãos; recorre a diversos moradores do povoado, mas todos se recusam, alguns por medo, outros por comodismo. Finalmente ela faz a viagem sozinha e é assassinada pelo criminoso do bosque. Pergunta: Quem é responsável por sua morte? Costumo receber respostas para todos os gostos, conforme a personalidade do interrogado. Há quem culpe a intransigência do marido, a covardia do amante, a falta de profissionalismo do guarda, o mau funcionamento das instituições que nos prometem segurança, a falta de solidariedade dos moradores, até a má consciência da própria assassinada… Poucos respondem o óbvio: que o Culpado (com maiúscula de principal responsável pelo crime) é o próprio que a mata. Sem dúvida, na responsabilidade de cada ação intervêm numerosas circunstâncias que podem servir de atenuantes e às vezes diluir ao máximo a culpa como tal, mas nunca ao ponto de “desligar” totalmente do ato o agente que o realiza intencionalmente. Compreender todos os aspectos de uma ação pode levar a perdoá-la mas nunca a apagar completamente a responsabilidade do sujeito livre: caso contrário, já não se trataria de uma ação mas de um acidente fatal. No entanto não será justamente a própria liberdade o acidente fatal da vida humana em sociedade?

Uma das reflexões mais enigmaticamente sugestivas sobre o vínculo entre ação e responsabilidade é a que se encontra no “Bhagavad Gita”, ou “Canção do Senhor”, um longo poema dialogado composto provavelmente no século III a. C., incluído no Mahabharata, a grande epopéia hindu. O herói Arjuna avança em seu carro de guerra contra as tropas inimigas e dispõe as flechas com que irá exterminar todos os que puder. Mas entre os adversários que deve tentar matar ele distingue vários parentes e amigos (trata-se de uma guerra civil, fratricida) e isso o angustia a tal ponto que considera seriamente abandonar o combate. Então o auriga que dirige seu carro de combate, e que não é outro senão o deus Krishna, identifica-se e lhe faz uma preleção sobre seu dever. Segundo Krishna, o escrúpulo que Arjuna sente diante da tarefa de matar é infundado, porque “nem dos mortos nem dos vivos se compadecem os sábios”. No mundo das aparências enganosas em que nos movemos, o verdadeiramente substantivo (Brahma, o Absoluto incriado e imorredouro) não pode ser destruído por dardos nem modificado por nenhuma operação humana. A cada um cabe atuar como o que é – no caso de Arjuna, que é um guerreiro, lutando no campo de batalha -, mas a sabedoria consiste em não ter nenhum apego aos frutos ou conseqüências da ação: “Na ação está teu empenho, não em seus frutos, jamais: não tenhas como fim os frutos da ação nem tenhas apego à inação.” Todos somos obrigados a atuar pelas circunstâncias naturais em que transcorre nossa vida: “Ninguém, nem por um momento, jamais está sem agir; é levado à Ação, mau grado seu, pelos fios nascidos da Natureza.” O segredo está em agir como se não se agisse, em realizar as ações que nos cabem sem deixar que nosso ânimo se perturbe pelo desejo, pela ira, pelo temor ou pela esperança. “Por isso sem apego sempre a Ação que há de fazer-se faz; se realiza a Ação sem apego, o mais alto alcança o homem.”4

Para nossas mentalidades cristãs (por mais que nos consideremos leigos ou até ateus), esse deus que tranqüilamente recomenda ao homem que pratique a matança como se não estivesse fazendo nada – ou como se estivesse fazendo qualquer outra coisa! – é difícil de entender. A própria idéia de que devemos resignar-nos à ação como parte da ordem da natureza mas nos entregando a ela com pleno “desinteresse” pelo que promete é contrária a tudo o que significa “projeto”, “intenção”, assim como o “êxito” ou “fracasso” do que é empreendido. Mas o peso da responsabilidade da ação – que não é mero projeto ocidental, uma vez que o próprio Arjuna o experimenta quando está prestes a massacrar seus parentes, tanto quanto Macbeth antes de se decidir pelo assassinato de Duncan – alivia-se com o chocante raciocínio de que é preciso perpetrar o evitável como se fosse inevitável. No fundo, atuar “conscientemente” nada mais é do que compreender de que modo todos nós somos atuados pelo aparente e reconhecer nossa identidade com o que sempre é mas nunca faz. Podemos encontrar paralelismos entre essa perspectiva oriental e a forma de pensar dos estóicos ou de Spinoza, embora premissas semelhantes desemboquem em regras práticas muito diferentes: no pensamento ocidental, a consideração objetiva da rede causal dentro da qual atuamos permite “entender” melhor a ação, mas nunca “nos desinteressar” dela, isto é, de seus objetivos e conseqüências. Assim é possível compreender melhor as respeitosas repreensões que um grande admirador da sabedoria hindu, Octavio Paz, formula (em seu livro Vislumbres de la India) contra essa doutrina do Bhagavad Gita: “O desprendimento de Arjuna é um ato íntimo, uma renúncia a si mesmo e a seus apetites, um ato de heroísmo espiritual e que, no entanto, não revela amor ao próximo. Arjuna não salva ninguém exceto a si mesmo… o mínimo que se pode dizer é que Krishna prega um desinteresse em filantropia.”

Ser livre é responder por nossos atos e sempre se responde diante dos outros, com os outros como vítimas, como testemunhas, e como juízes. No entanto, todos parecemos buscar “algo” que nos alivie a pesada carga da liberdade. Não podemos supor que nossa natureza humana seja livre mas que dentro dessa liberdade “necessária” atuamos tão inocentemente como crescem as plantas ou se desenvolvem os animais? Se somos livres “por natureza”, será que a própria natureza não marca o âmbito de eficácia de nossa liberdade? Em que se distingue o irremediavelmente livre de nossa condição natural do simplesmente irremediável de outros seres naturais? Talvez um indício de resposta nos seja oferecido por este belo poema da polonesa Wistlawa Szymborska:

A águia ratoeira não costuma censurar-se nada.
Carece de escrúpulos a pantera negra.
As piranhas não duvidam da honradez de seus atos.
E a cascavel à constante auto-aprovação se entrega.
A lagosta, o caimã, a triquina e a mutuca
vivem satisfeitos por ser como são.
{…} No terceiro planeta do Sol,
a consciência limpa e tranqüila
é um sintoma primordial de animalidade.
³

O homem parece ser o único animal que pode ficar descontente consigo mesmo: o arrependimento é uma das possibilidades sempre abertas à autoconsciência do agente livre. Mas, se somos naturalmente livres, como podemos nos arrepender daquilo que fazemos com nossa liberdade natural? Como pode o desenvolvimento do que naturalmente somos trazer-nos conflitos íntimos? Devemos então, agora, elucidar qual é nossa natureza e que sentido tem a noção de “natureza” para nós, os animais capazes de consciência pesada.


O termo “liberdade” tem geralmente três usos diferentes, que freqüentemente se confundem nos debates sobre o tema e que conviria tentar distinguir pelo menos na medida do possível.

a) A liberdade como disponibilidade para atuar de acordo com os próprios desejos ou projetos. É o sentido mais comum da palavra, ao qual nos referimos a maioria das vezes em que aparece o tema em nossa conversação. Faz alusão a quando carecemos de impedimentos físicos, psicológicos ou legais para agir como queremos. (…)

(¹) b) A liberdade de querer o que quero e não só de fazer ou tentar fazer o que quero. Trata-se de um nível mais sutil e menos óbvio do conceito de “liberdade”. Mesmo que eu esteja amarrado e encarcerado, ninguém poderá me impedir de querer realizar uma determinada viagem: só podem impedir-me de realizá-la efetivamente. Se eu não quero, ninguém pode me obrigar a odiar meu torturador nem a crer nos dogmas que ele tenta me impor pela força. (…)

(²) c) A liberdade de querer o que não queremos e de não querer o que de fato queremos. Sem dúvida, a mais estranha e difícil tanto de explicar como de compreender. Para abordá-la, observemos que nós, humanos, sentimos não apenas desejos como também desejos sobre os desejos que temos; não só temos intenções como também gostaríamos de certas intenções… mesmo que de fato não as tenhamos! Suponhamos que eu passe por uma casa em chamas e ouça uma criança chorar lá dentro: não quero entrar para tentar salvá-la (me dá medo, é muito perigoso, para isso existem os bombeiros…) mas ao mesmo tempo eu gostaria de querer entrar para salvá-la, porque me agradaria não ter tanto medo do perigo e viver em um mundo em que os adultos ajudassem as crianças em caso de incêndio. Sou o que quero ser mas ao mesmo tempo gostaria de ser de outra maneira, de querer outras coisas, de querer melhor. Qualquer um pode fugir do perigo, mas ninguém quer ser covarde; às vezes tenho vontade ou interesse em mentir, mas não gostaria de me considerar um mentiroso; gosto de beber mas não quero me transformar num alcoólico. O que “quero fazer agora” não é idêntico ao que “quero ser”. (…)

(³) Extraído de Paisaje con grano de arena, de W. Szymborska, trad. esp. de A. M. Moix e J. Slawomirski, Lumen, Barcelona. [Tradução livre a partir do texto citado pelo autor.]

(4Canción del Señhor, em Atma y Brahma, trad. esp. de F. Rodríguez Adrados, Editora Nacional, Madri. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

Vincent Liopard. is a BIUCS Project.