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A Fábula da Cidade
Uma casa é muito pouco para um homem; sua verdadeira casa é a cidade. E os homens não amam as cidades que os humilham e sufocam, mas
aquelas que parecem amoldadas às suas necessidades e desejos, humanizadas e oferecidas - uma cidade deve ter a medida do homem.
É possível que, pouco a pouco, os lugares cordiais da cidade estejam desaparecendo, desfigurados pelo progresso e pela técnica,
tornados monstruosos pela conspiração dos elementos que obrigam as criaturas a viver como se estivessem lutando, jungidas a um certo
número de rituais que as impedem de parar no meio de uma calçada para ver uma criança ou as levam a atravessar uma rua como se
estivessem fugindo da morte.
Em cidades assim, a criatura humana pouco ou nada vale, porque não existe entre ela e a paisagem a harmonia necessária, que torna a
vida uma coisa digna. E o habitante, escravizado pelo monstro, vai-se repetindo diariamente, correndo para as filas dos alimentos, dos
transportes, do trabalho e das diversões, proibido de fazer algo que lhe dê a certeza da própria existência.
Não será excessivo dizer que o Rio está correndo o perigo de incluir-se no número das cidades desumanizadas, devoradas pela noção da
pressa e do combate, sem rostos que iluminem em sorrisos e lugares que convidem à permanência.
Mal os seus habitantes podem tomar cafezinho e conversar sentados; já não se pode passear nem sorrir nem sonhar, e as pessoas andam
como se isso fosse um castigo, uma escravidão que as leva a imaginar o refúgio das casas onde as tardes de sábado e os domingos as
insulam, num temor de visitas que escamoteiam o descanso e a intimidade familiar. E há mesmo gente que transfere os sonhos para a
velhice, quando a aposentadoria, triunfante da morte, facultar dias inteiros numa casa de subúrbio, criando canários, decifrando
palavras cruzadas, sonhando para jogar no bicho, num mister que justifique a existência. E outras pessoas há que esperam que o dia em
que poderão fugir da cidade de arranha-céus inamistosos, de atmosferas sufocantes, de censuras e exigências, humilhações e ameaças,
para regressar aos lugares de onde vieram, iludidas por esse mito mundial das grandes cidades. E ainda existem as que, durante anos e
anos, compram terrenos a prestações ou juntam dinheiro, à espera do dia em que se plantarão para sempre num lugar imaginário, sem base
física, naquele sítio onde cada criatura é um Robinson atento às brisas e delícias de sua ilha, ou o síndico ciumento de um paraíso
perdido.
Para que se ame uma cidade, é preciso que ela se amolde à imagem e semelhança dos seus munícipes, possua a dimensão das criaturas
humanas. Isso não quer dizer que as cidades devam ser pequenas; significa apenas que, nas mudanças e transfigurações, elas crescerão
pensando naqueles que as habitam e completam, e as tornam vivas. Pois o homem é para a cidade como o sangue para o corpo - fora disso,
dessa harmoniosa circulação, há apenas cadáveres e ruínas.
O habitante deve sentir-se livre e solidário, e não um guerreiro sozinho, um terrorista em silêncio. Deve encontrar na paisagem os
motivos que o entranham à vida e ao tempo. E ele não quer a paisagem dos turistas, onde se consegue a beleza infensa dos postais
monumentalizados; reclama somente os lugares que lhe estimulem a fome de viver, sonegando-o aos cansaços e desencantos. Em termos de
subúrbio, ele aspira ao bar debaixo de árvores, com cervejinha gelada e tira-gosto, à praça com play-ground para crianças, à
retreta coroada de valsas.
Suprimidas as relações entre o habitante e seu panorama,
tornada incomunicável a paisagem, indiferente a cidade à fome de simpatia que faz alguém preferir uma rua a outra, um bonde a um
ônibus, nada há mais que fazer senão alimentar-se a criatura de nostalgia e guardar no fundo do coração a imagem da cidade
comunicante, o reino da comunhão humana onde se poderia dizer "bom dia" com a convicção de quem sabe o que isso significa.
E esse risco está correndo o Rio, cidade viva e cordial. Um carioca dos velhos tempos ia andando pela avenida, esbarrou num cidadão
que vinha em sentido contrário e pediu desculpas. O outro, que estava transbordante de pressa, indignou-se:
- O senhor não tem o que fazer? Esbarra na gente e ainda se vira para pedir desculpas?
Era a fábula da cidade correndo para a desumanização.
(IVO, Lêdo. O navio adormecido no bosque. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades/INL, 1977).
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