por George Marmelstein Lima
(http://direitosfundamentais.net/2013/11/18/a-engenharia-reversa-da-argumentacao)
A Engenharia Reversa da Argumentação
Coloque-se na posição de um recrutador responsável pela seleção de uma pessoa para ocupar o posto de Chefe do Departamento de Polícia. Você tem dois candidatos em potencial: João, que é um policial com bastante experiência de rua, mas baixa formação acadêmica, e Maria, que é uma policial com pouca experiência de rua, mas alta formação acadêmica. Quem você escolheria?
Essa pergunta, formulada de forma um pouco mais complexa, foi parte de uma importante pesquisa em psicologia social realizada por Uhlmann e Cohen, da Universidade de Yale. Os pesquisadores criaram dois cenários diferentes. No primeiro cenário, o candidato masculino tinha boa experiência em rua, mas baixa formação acadêmica, enquanto a candidata feminina tinha as qualidades opostas. No segundo cenário, o quadro se inverteu: o candidato masculino foi apresentado com pouca experiência em rua, mas alta formação acadêmica.
Em ambos os cenários, observou-se uma tendência majoritária de se escolher o candidato masculino para o posto de Chefe do Departamento de Polícia. Essa tendência ocorria mesmo quando os recrutadores (que eram cobaias da experiência) eram do sexo feminino.
O mais curioso e relevante é que também foi perguntado aos recrutadores quais os motivos preponderantes da escolha. Por que eles preferiam João? A resposta variava conforme o cenário: no primeiro caso, João foi escolhido porque a experiência nas ruas seria uma qualidade mais importante para um Chefe de Polícia; no segundo caso, João foi escolhido porque a formação acadêmica era a mais relevante para um Chefe de Polícia. Ou seja, o argumento era construído conforme a resposta, funcionando como um pretexto para justificar a escolha depois que ela já tinha sido feita e não como um guia a orientar previamente a escolha. No fundo, o que motivou o juízo foi uma pré-compreensão baseada numa perspectiva estereotipada de que o Chefe de Polícia tinha que ser homem.
Ressalte-se que os pesquisadores também tiveram o cuidado de criar um modelo de pesquisa onde o cargo a ser ocupado era mais relacionado com a figura feminina: o de Professor(a) de Estudos Femininos. Nessa outra situação, também se observou que as escolhas eram motivadas pelo estereótipo, e as razões posteriormente exigidas para justificar a escolha eram construídas conforme a situação, ou seja, as qualidades apontadas como mais importantes para aquele cargo variavam conforme o fato de o candidato ser homem ou mulher. Nesse caso, as qualidades que, ocasionalmente, eram atribuídas à candidata feminina prevaleciam para que, em geral, a mulher fosse escolhida ao cargo.
Muitas são as lições que podemos extrair dessa pesquisa.
A primeira, sem dúvida, é a de que nossas escolhas são, muitas vezes, motivadas por pré-compreensões, que nem sempre temos coragem de assumir ou mesmo consciência de que existem. Nossos juízos pré-concebidos são muito mais fortes e influentes do que imaginamos.
A segunda é a de que devemos sempre desconfiar das razões apresentadas para justificar as nossas escolhas (e as escolhas dos outros), pois, por mais que sejam expressas em linguagem racional e pretensamente objetiva, elas podem estar apenas tentando esconder os seus verdadeiros motivos. E isso não vale apenas para o recrutamento a uma vaga de emprego, mas também para as decisões mais variadas e importantes que, cotidianamente, temos que tomar.
A terceira é a de que não devemos menosprezar o contexto da descoberta para uma completa compreensão do ato de decidir. Ainda que o contexto da justificação tenha um papel importante no controle da racionalidade da decisão e por mais que uma argumentação bem desenvolvida tenha um enorme poder de convencimento, nem sempre somos capazes de expressar claramente todos os autênticos fundamentos das nossas escolhas, e o que é dito pode não corresponder ao que foi, de fato, relevante para a formação do juízo.
Por fim, o experimento também pode servir para demonstrar a importância da coerência e da consistência como limite ao arbítrio. Ainda que as razões apresentadas não sejam vinculantes para todas as escolhas futuras, já que cada caso tem a sua particularidade, elas deveriam funcionar como constrangimentos éticos capazes de dificultar a dissimilação argumentativa. Quando retiramos a situação de seu contexto de singularidade e a colocamos numa perspectiva de longo prazo, passível de repetição futura, tendemos a ser muito mais cautelosos na apresentação dos argumentos, estando mais propícios a construir razões “universalizáveis”. Se isso não é uma garantia completa contra a hipocrisia, pelo menos fica mais fácil desmascará-la.
Aliás, por falar em máscara, há uma anedota contada por Schopenhauer para criticar Kant que vem bem ao encontro deste post. Schopenhauer pretendia criticar Kant pelo fato de que o seu método de reflexão sempre levava à resposta que, previamente, já havia sido formada em seu juízo, por fatores alheios ao seu próprio método. Para isso, Schop sugeriu que a proposta de Kant parecia com a de um homem que, num baile de máscaras, corteja toda noite uma beldade mascarada, na ilusão de ter feito uma grande conquista. Depois de passar toda a noite dançando com a misteriosa dama, o homem retira-lhe a máscara, surgindo, para sua surpresa, o rosto de sua própria mulher!
Moral da história: estamos sempre predispostos a nos apaixonarmos por todos os argumentos que agradam nossos juízos já formados.
PS. A pesquisa que inspirou o presente post foi comentada no livro “Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas”, de Leonard Mlodinow, um excelente livro de divulgação da neurociência e da psicologia social.