Sonhos – O Demônio Chorão
Eu era humano. É uma história estúpida!
Antigamente este era um bonito campo florido. Então, as bombas nucleares, os mísseis transformaram-no neste deserto. Então daquelas cinzas da morte, estranhas flores desabrocharam. Dentes-de-leão monstruosos. Isto é uma rosa. O caule sai da flor e há um botão esquisito em cima. Está carregada de radiação. Causa essa mutação. As flores estão mutiladas. Não apenas as flores, os seres humanos, também. Olhe para mim, humanidade estúpida fez isso. Fez de nosso planeta um depósito para resíduos venenosos. A natureza desapareceu da Terra, a natureza que amávamos. Perdemos os pássaros, os animais, os peixes. Há algum tempo, ví uma lebre com duas caras, um pássaro com um olho só e um peixe com pelos.
Não há alimento! Comemos uns aos outros. Os mais fracos primeiro. Está chegando a minha vez. Mesmo entre os demônios há hierarquia. Demônios de um chifre, como eu, são sempre comidos pelos que têm dois ou três chifres. Quando humanos, eram poderosos e presunçosos. Como demônios continuam os mesmos. Que seja como eles querem. Que tenham um monte de chifres. Que vivam atormentados com a aparência que têm. É um inferno. Pior que a morte. Não podem morrer. Mesmo querendo. A imortalidade é o castigo deles. Atormentados pelos próprios pecados, vão sofrer eternamente.
Logo vão me comer. Ficarei livre. Mas não quero ser comido. Por isso, estou fugindo. Mas sinto tanta fome que tenho nojo de mim mesmo. Eu era fazendeiro quando era humano. Jogava leite no rio para manter os preços. Enterrei batatas e repolhos com escavadeira. Que estupidez!
Quando chega a noite os demônios urram de dor. Os chifres doem. É pior que o câncer. Clamam pela morte, mas vão viver eternamente.
(Extraído do filme “Dreams” de Akira Kurosawa)
“- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”
(Marco Polo em As Cidades Invisíveis, Italo Calvino, 2000, Companhia das Letras)