Viver Juntos

(Capítulo Oito)

SAVATER, Fernando. Viver Juntos. In: As perguntas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.147-168.

Ninguém chega a se tornar humano se está sozinho. Nós nos fazemos humanos uns aos outros. Fomos “contagiados” por nossa humanidade: é uma doença mortal que nunca teríamos desenvolvido se não fosse pela proximidade de nossos semelhantes! Foi-nos passada boca a boca, pela palavra, mas antes ainda pelo olhar: quando ainda estamos muito longe de saber ler, já lemos nossa humanidade nos olhos de nossos pais ou de quem cuida de nós em seu lugar. É um olhar que contém amor, preocupação, censura ou zombaria: ou seja, significados. E que nos tira de nossa insignificância natural para nos tornar humanamente significativos. (…)

Sendo como somos, como humanos, fruto desse contágio social, à primeira vista é surpreendente que suportemos nossa sociabilidade com tanto desassossego. Não seríamos o que somos sem os outros, mas custa-nos ser com os outros. A convivência social nunca é indolor. Talvez justamente porque é importante de mais para nós, porque esperamos ou temos medo demais dela, por que nos incomoda precisar tanto dela. Durante um período de tempo muito breve, cada ser humano acredita ser Deus ou pelo menos rei de seu minúsculo universo conhecido.

A filosofia e a literatura contemporâneas estão repletas de lamentos sobre a carga que nos impõe viver em sociedade, as frustrações que acarreta nossa condição social e os preservativos que podemos usar para padecê-las o menos possível. Em seu drama Huis clos [Entre quatro paredes]. Jean-Paul Sartre cunhou uma sentença célebre, depois mil vezes repetia: “O inferno são os outros.” Isso significa que o paraíso seria a solidão ou o isolamento (que por certo estão muito longe de ser a mesma coisa). O tema da “incomunicação” aparece também das mais diversas maneiras em obras de pensamento, romances, poemas, etc. Às vezes é uma queixa pela perda de uma comunidade de sentido que supostamente existia nas sociedades tradicionais e que o individualismo moderno destruiu; mas em outros casos parece provir antes desse próprio individualismo, que se considera incompreendido pelos outros no que tem de único e irredutivelmente “especial”. Outros autores deploram ou se rebelam contra as limitações que a convivência em sociedade impõe à nossa liberdade pessoal: nunca somos o que realmente queremos ser, mas o que os outros exigem que sejamos! Alguns formulam estratégias vitais para que o coletivo não devore totalmente nossa intimidade: colaboremos com a sociedade enquanto nos for vantajoso e saibamos nos dissociar dela quando nos parecer oportuno. Afinal de contas, como disse em certa ocasião a empreendedora Mrs Thatcher, a sociedade é uma enteléquia e os únicos que existem realmente são os indivíduos…

(…) Sem querer contrariar Mrs Thatcher, parece evidente que as sociedades não são simplesmente um acordo mais ou menos provisório, mais ou menos conveniente, ao qual chegam indivíduos racionais e autônomos, mas que, pelo contrário, os indivíduos racionais e autônomos são produtos excelentes da evolução histórica das sociedades, para cuja transformação eles, por sua vez, depois contribuem. Como poderia ser de outro modo?

Os outros são o inferno? Só na medida em que podem tornar-nos a vida infernal ao nos revelar – às vezes com pouca consideração – as fissuras do sonho libertário de onipotência que nossa imaturidade autocomplacente gosta de imaginar. Vivemos necessariamente incomunicados? Sem dúvida, se por “comunicação” entendemos que os outros nos interpretem espontaneamente de modo tão exaustivo quanto nós mesmos acreditamos nos expressar; mas só muito relativamente, se assumimos que não é a mesma coisa pedir compreensão e fazer-se compreender e que a boa comunicação tem por primeiro requisito fazer um esforço para compreender esse outro de quem pedimos compreensão. Os outros e as instituições que compartilhamos com eles limitam nossa liberdade? Talvez a pergunta devesse ser formulada de maneira diferente: tem sentido falar em liberdade sem referência à responsabilidade, ou seja, à nossa relação com os outros?, não são justamente as instituições – a começar pelas leis – que nos revelam que somos livres para obedecer-lhes ou desafiá-las, assim como para estabelecê-las ou revogá-las? Mesmo os abusos totalitários ou simplesmente autoritários servem para compreendermos melhor – na resistência contra eles – as implicações políticas e sociais de nossa autonomia pessoal.

Por mais justificados que sejam os protestos contra as formas efetivas da sociedade atual (de qualquer sociedade “atual”), continua sendo igualmente certo que somos humanamente configurados para e por nossos semelhantes. É nosso destino de seres lingüísticos, ou seja, simbólicos. Ao nascer, somos “capazes” de humanidade, mas não atualizamos essa capacidade – que inclui entre suas características a autonomia e a liberdade – até gozar e sofrer a relação com os demais. (…) Ninguém chegaria à humanidade se não fosse contagiado pelos outros, pois tornar-se humano nunca é coisa de um só, mas tarefa de vários; mas, uma vez humanos, a pior tortura seria que ninguém nos reconhecesse como tais… nem sequer para nos aborrecer com suas censuras! (…)

Por que existe a discórdia? Sem dúvida, não é porque nós, seres humanos, sejamos irracionais ou violentos por natureza, como às vezes dizem os pregadores de trivialidades. Muito pelo contrário. Grande parte de nossos antagonismos provêm do fato de sermos seres decididamente “racionais”, ou seja, muito capazes de calcular nosso benefício e decididos a não aceitar nenhum pacto do qual não saiamos claramente ganhadores. Somos suficientemente “racionais” pelo menos para nos aproveitar dos outros e desconfiar do próximo (supondo, com bons argumentos, que ele se portará conosco, se possível, como nós tentamos nos portar com ele). Também usamos a razão suficientemente para nos dar conta de que nada nos traria tanto benefício como viver numa comunidade de pessoas leais e solidárias diante da desgraça alheia, porém nos perguntamos: “E se os outros ainda não se deram conta disso?”, para concluir: “Eles que comecem, e eu me comprometo a lhes pagar na mesma moeda.” Tudo muito racional, como se vê. A esta altura, espero não ter que lembrar ao leitor a diferença já reiterada entre o “racional” e o “razoável”. Se preciso, observem a realidade que os cerca (na qual algumas poucas centenas de privilegiados possuem a imensa maioria das riquezas, ao passo que milhões de criaturas morrem de fome) e poderão concluir que vivemos em um mundo tremendamente racional mas pouquíssimo razoável…

Também não é verdade que sejamos espontaneamente “violentos” ou “anti-sociais”. Claro que em todas as sociedades existem pessoas assim, que padecem de alguma alteração psíquica ou que foram tão maltratadas pelos outros que depois lhes pagam na mesma moeda. Não podemos, legitimamente, esperar que aqueles a quem o resto da comunidade trata como se fossem animais, utilizando-os como burros de carga e não se interessando por sua sorte, depois se comportem como verdadeiros cidadãos. Mas não há tantos casos como seria de se esperar (é surpreendente, de fato, o quanto se empenham em continuar sendo sociáveis até aqueles que menos proveito tiram da sociedade) nem rompem a convivência humana tanto quanto outras causas que diríamos opostas. Com efeito, os grandes enfrentamentos coletivos geralmente não são protagonizados por indivíduos pessoalmente violentos, mas sim por grupos formados por indivíduos disciplinados e obedientes, que foram convencidos de que seu interesse comum depende de que lutem contra certos adversários “estranhos” e os destruam. Não são violentos por razões “anti-sociais”, mas por excesso de sociabilidade: têm tanto anseio de “normalidade”, de se parecer o mais possível com o resto do grupo, de se parecer o mais possível com o resto do grupo, de conservar sua “identidade” com ele a todo custo, que estão dispostos a exterminar os diferentes, os forasteiros, os que têm crenças ou hábitos estranhos, os que se considera que ameacem os interesses legítimos ou abusivos do próprio rebanho. Não, não são abundantes os lobos ferozes e os que há não representam o maior risco para a concórdia humana; o verdadeiro perigo provém, em geral, das ovelhas raivosas

Desde muito antigamente vem-se tentando organizar a sociedade humana de modo que ela garanta o máximo de concórdia. Por certo para conseguí-lo não podemos confiar simplesmente no instinto social de nossa espécie. É verdade que ele nos faz ter necessidade da companhia de nossos semelhantes, mas também nos pões em confronto com eles. As mesmas razões que nos aproximam dos outros podem fazer com que eles se tornem nossos inimigos. Como isso pode acontecer? Somos seres sociáveis porque nos parecemos muito uns com os outros (muito mais, sem dúvida, do que a diversidade de nossas culturas e formas de vida levam a supor) e em geral queremos todos aproximadamente as mesmas coisas essenciais: reconhecimento, companhia, proteção, abundância, diversão, segurança… Porém somos tão parecidos que freqüentemente desejamos ao mesmo tempo as mesmas coisas (materiais ou simbólicas) e as disputamos uns com os outros. É até muito freqüente desejarmos certos bens só porque vemos que outros também os desejam: a tal ponto somos gregários e conformistas!

(…)

As manifestações humanas mais características só podem ser compreendidas em um contexto social: são coisas que fazemos pensando nos outros e chamando-os por meio delas quando não estão presentes. Por exemplo, rir. O humor é um aceno em busca de autênticos “companheiros vitais” que possam compartilhar conosco o surgimento prazeroso e às vezes demolidor do sem-sentido na ordem rotineira dos significados estabelecidos. Nada é tão sociável nem une tanto como o senso de humor: por isso, quando numa reunião de amigos se ouvem muitas risadas ou se trocam sorrisos em profusão, dizemos que estão “se divertindo”. Ou seja, estão se dando bem reconhecendo-se uns aos outros. Até quem ri sozinho na verdade está rindo à espera das almas gêmeas que podem unir-se a ele para rir. Em muitas amizades – e não poucos amores! – começam quando duas pessoas entendem um chiste que escapa aos outros…

A criação estética e seus prazeres também não podem ser entendidos adequadamente se não são compartilhados. Quando descobrimos algo bonito, a primeira coisa que fazemos é procurar alguém que possa desfrutá-la conosco: junto com ele ou com ela também nós desfrutaremos mais. As crianças pequenas passam a vida puxando os adultos pela manga para lhes mostrar pequenas maravilhas que às vezes os grandes são estúpidos demais para apreciar o quanto valem. Mas o que é a beleza? Por que é tão importante para nós descobri-la, criá-la e compartilhá-la? (…)

Vincent Liopard. is a BIUCS Project.