“Ação à distância, velocidade, comunicação, linha de montagem, triunfo das massas, Holocausto: através das metáforas e das realidades que marcaram esses 100 últimos anos, aparece a verdadeira doença do progresso.
Primeira regra: não se pode julgar um século, sobretudo alguns anos antes de seu fim, sem recolocá-lo na devida perspectiva histórica. Pensem no que teria respondido um geógrafo do século XV se lhe tivessem pedido uma síntese de seu século em 1º de janeiro de 1490. Ou no que teríamos respondido se nos tivessem pedido um balanço de 1989 um mês antes da queda do Muro de Berlim e da revolução na Romênia.
Segunda regra: quem julga? O julgamento de um cidadão do mundo ocidental é diferente do de um biafrense que morre de fome. Mas, se essa regra é válida para cada século, ela o é um pouco menos para o nosso. Para o bem ou para o mal, o modelo ocidental se impõe gradativamente sobre uma grande parte do planeta. Um camponês chinês está hoje, para o bem ou para o mal, mais próximo de um camponês francês do que estava há dois séculos.
Terceira regra: não se pode avaliar emocionalmente um século estando dentro dele e sem proceder a comparações estatísticas. O número de pessoas que hoje morrem de fome no mundo nos causa horror. Mas o número de pessoas que morriam de fome no século passado também nos deve causar horror, sobretudo se o comparamos à população mundial da época. Segundo relatos de vários legados pontifícios, o príncipe Vlad Tepes de Valáquia (cognominado Drácula), que empalava mulheres e crianças enquanto se divertia com seus cortesãos, havia ordenado, só no ano de 1475, o massacre de 100.000 pessoas. Considerando que seu principado contava 500.000 habitantes, é como se hoje o governo italiano ordenasse o massacre de 10 milhões de cidadãos. O século que chega ao fim é o que presenciou o Holocausto, Hiroshima, os regimes dos Grandes irmãos e dos Pequenos Pais, os massacres do Camboja e assim por diante. Não é um balanço tranqüilizador. Mas, como veremos, o horror desses acontecimentos não reside apenas na quantidade, que, certamente, é assustadora.
Numa Europa com apenas algumas dezenas de milhões de habitantes, os pogroms das Cruzadas, as cidades saqueadas durante a Guerra dos Trinta Anos representam um número de vítimas que deveria deixar-nos sem voz. Ainda mais que os responsáveis eram honrados como heróis tanto nos livros de História quanto nos retratos suntuosos que fazem a grandeza da história da arte.
Pode-se julgar um século pela distância existente entre seu sistema de valores e sua prática cotidiana. Como se sabe, a hipocrisia permite dispor compromissos entre o reconhecimento teórico dos valores e sua violação. Ora, nosso século talvez tenha sido menos hipócrita que os outros. Ele enunciou regras de convivência; certamente as violou, mas moveu e move processos públicos contra essas violações. Isso não impede que elas se repitam, mas teve alguma influência sobre nossos comportamentos cotidianos e sobre as probabilidades de um grande número de cidadãos, sobretudo no mundo ocidental, viver por mais tempo, evitando abusos de poder de toda ordem.
Hoje posso andar pela rua sem me fazer matar por alguém que queira manter sua trajetória na mesma calçada que a minha, e sei que meus filhos não receberão cacetadas do filho de um duque como meio de aprendizagem do poder. Indivíduos prepotentes tentam ainda hoje expulsar uma mulher negra do ônibus, mas a opinião pública os condena: há apenas dois séculos, teríamos pensado agir como honestos cidadãos se tivéssemos investido uma parte de nosso pecúlio numa empresa que teria vendido essa mulher como escrava aos Estados Unidos. Parece que foi o que aconteceu com Voltaire.
Vejamos agora os aspectos ambíguos deste século. Ele terá sido o século das massas. Para o bem ou para o mal. Os direitos das massas foram reconhecidos: é muito importante o direito à palavra, à contestação, ao voto, exercer um cargo político, e não avaliamos o que isso representa porque não vivemos em séculos em que era normal um artesão morar num casebre imundo e um senhor que não tinha dinheiro para pagar-lhe mandar seus servidores baterem nele. Experimente tratar a murros seu encanador que exige pagamento e compreenderá que alguma coisa mudou. As conquistas morais e políticas deste século, graças às quais não se pode mais engravidar impunemente uma camponesa só porque se é dono de terras, se pagam hoje pelo sistema de estrelato: aquela, que, em outros tempos, teria sido uma camponesa indefesa é hoje assediada com a promessa de aparecer nua na capa de uma revista famosa.
Nosso século é o da aceleração tecnológica e científica, que se operou e continua a se operar em ritmos antes inconcebíveis. Foram necessários milhares de anos para passar do barco a remo à caravela ou da energia eólica ao motor de explosão; e em algumas décadas se passou do dirigível ao avião, da hélice ao turborreator e daí ao foguete interplanetário. Em algumas dezenas de anos, assistiu-se ao triunfo das teorias revolucionárias de Einstein e a seu questionamento.
O custo dessa aceleração da descoberta é a hiperespecialização. Estamos em via de viver a tragédia dos saberes separados: quanto mais os separamos, tanto mais fácil submeter a ciência aos cálculos do poder. Esse fenômeno está intimamente ligado ao fato de ter sido neste século que os homens colocaram mais diretamente em questão a sobrevivência do planeta. Um excelente químico pode imaginar um excelente desodorante, mas não possui mais o saber que lhe permitiria dar-se conta de que seu produto irá provocar um buraco na camada de ozônio.
O equivalente tecnológico da separação dos saberes foi a linha de montagem. Nesta, cada um conhece apenas uma fase do trabalho. Privado da satisfação de ver o produto acabado, cada um é também liberado de qualquer responsabilidade. Poderia produzir, e isso ocorre com freqüência, venenos sem que o soubesse. Mas a linha de montagem permite também fabricar aspirina em quantidade para o mundo todo. E rápido. Tudo se passa num ritmo acelerado, desconhecido dos séculos anteriores. Sem essa aceleração, o Muro de Berlim poderia ter durado milênios, como a Grande Muralha da China. É bom que tudo se tenha resolvido no espaço de trinta anos, mas pagamos o preço dessa rapidez. Poderíamos destruir o planeta num dia.
Nosso século foi o da comunicação instantânea. Hernán Cortés pôde destruir uma civilização e, antes que a notícia se espalhasse, teve tempo para encontrar justificativas a seus empreendimentos. Hoje, massacres da Praça da Paz Celestial, em Pequim, tornam-se atualidade no momento mesmo em que se desenrolam e provocam a reação de todo o mundo civilizado. Mas informações simultâneas em excesso, provenientes de todos os pontos do globo, produzem um hábito. O século da comunicação transformou a informação em espetáculo. Arriscamo-nos a confundir a todo instante a atualidade e o divertimento.
Nosso século presenciou o triunfo da ação à distância. Hoje, aperta-se um botão e entra-se em comunicação com Pequim. aperta-se um botão e um país inteiro explode. Aperta-se um botão e um foguete é lançado a Marte. A ação à distância salva numerosas vidas, mas irresponsabiliza o crime.
Ciência, tecnologia, comunicação, ação à distância, princípio da linha de montagem: tudo isso tornou possível o Holocausto. A perseguição racial e o genocídio não foram uma invenção de nosso século e herdamos do passado o hábito de brandir a ameaça de um complô judeu para desviar o descontentamento dos explorados. Mas o que torna tão terrível o genocídio nazista é que foi rápido, tecnologicamente eficaz e buscou o consenso servindo-se das comunicações de massa e do prestígio da ciência.
Foi fácil fazer passar por ciência uma teoria pseudocientífica, porque, num regime de separação dos saberes, o químico que aplicava os gases asfixiantes não julgava necessário ter opiniões sobre a antropologia física. O Holocausto foi possível porque se podia aceitá-lo e justificá-lo sem ver seus resultados. Além de um número, afinal restrito, de pessoas responsáveis e de executantes diretos (sádicos e loucos), milhões de outros puderam colaborar à distância, realizando cada qual um gesto que nada tinha de aterrador.
Assim, este século soube fazer o melhor de si o pior de si. Tudo o que aconteceu de terrível a seguir não foi senão repetição, sem grande inovação.
O século do triunfo tecnológico foi também o da descoberta da fragilidade. Um moinho de vento podia ser reparado, mas o sistema do computador não tem defesa diante da má intenção de um garoto precoce. O século está estressado porque não sabe de quem se deve defender nem como: somos demasiado poderosos para poder evitar nossos inimigos. Encontramos o meio de eliminar a sujeira, mas não o de eliminar os resíduos. Porque a sujeira nascia da indigência, que podia ser reduzida, ao passo que os resíduos (inclusive os radioativos) nascem do bem-estar que ninguém quer mais perder. Eis porque nosso século foi o da angústia e da utopia de curá-la. Com um superego mais forte, a humanidade se embaraça num mal que conhece perfeitamente, confessa-o em público, tenta purificações expiatórias às quais se juntam as igrejas e os governos e repete o mal porque ação à distância e linha de montagem impedem identificá-lo no início do processo. Espaço, tempo, informação, crime, castigo, arrependimento, absolvição, indignação, esquecimento, descoberta, crítica, nascimento, longa vida, morte… tudo em altíssima velocidade. A um ritmo de stress. Nosso século é o do enfarte.”
(ECO, Umberto. O segundo diário mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro : Record, 1994)