O anel de Giges

O que você faria se fosse invencível? Invisível?

O que você faria se nenhuma Lei humana pudesse lhe afetar? O que você não faria?

Eis a resposta:

COMTE-SPONVILLE, André. A moral. In: Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.17-26.
(Adaptações por André Alcântara)

A moral

É melhor ser Sócrates insatisfeito do que um porco satisfeito: é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um imbecil satisfeito. E, se o imbecil ou o porco são de opinião diferente, é que só conhecem um lado da questão: o deles. A outra parte, para fazer a comparação, conhece os dois lados.
(John Stuart Mill)

As pessoas se enganam sobre a moral. Em primeiro lugar, ela não existe para punir, para reprimir, para condenar. Para isso há os tribunais, os policiais, as prisões, que ninguém confundiria com uma moral. Sócrates morreu na prisão, mas livre porém que seus juízes. É aí que a filosofia talvez comece. É aí que a moral começa, para cada um, e sempre recomeça: onde nenhuma punição é possível, onde nenhuma repressão é eficaz, onde nenhuma condenação, em todo caso nenhuma condenação exterior, é necessária. A moral começa onde somos livres: ela é essa liberdade mesma, quando ela se julga e se comanda.

Você bem que gostaria de roubar aquele disco ou aquela roupa na loja... Mas um segurança está observando, ou então há um sistema de vigilância eletrônica, ou simplesmente você tem medo de ser pego, punido, condenado... Não se trata de honestidade; trata-se de cálculo. Não é moral; é precaução. O medo do policial é o contrário da virtude, ou só tem a virtude da prudência.

Imagine, ao contrário, que você tenha aquele anel que Platão evoca, o célebre anel de Giges, que tornaria você invisível sempre que você desejasse... É um anel mágico, que um pastor encontra por acaso. Basta virar a pedra do anel para dentro da palma para se tornar totalmente invisível, e virá-la para fora para ficar novamente visível... Giges, que antes era tido como um homem honesto, não foi capaz de resistir às tentações a que esse anel o submetia: aproveitou seus poderes mágicos para entrar no palácio, seduzir a rainha, assassinar o rei, tomar o poder, exercê-lo em seu único e exclusivo benefício... Quem conta a coisa, em A república, conclui que o bom e o mau, ou os assim considerados, só se distinguem pela prudência ou pela hipocrisia, em outras palavras, pela importância desigual que dão ao olhar alheio ou por sua habilidade maior ou menor para se esconder... Se ambos possuíssem o anel de Giges, nada mais os distinguiria: "ambos tenderiam para o mesmo fim". Isso equivale a sugerir que a moral não passa de uma ilusão, de uma mentira, de um medo maquiado de virtude. Bastaria poder ficar invisível para que toda proibição sumisse e que, para cada um, não houvesse mais que a busca do seu prazer ou do seu interesse egoístas.

Será verdade? Platão, claro, está convencido do contrário. Mas ninguém é obrigado a ser platônico... A única resposta válida, para você, está em você. Imagine, é uma experiência de pensamento, que você tem esse anel. O que você faria? O que não faria? Continuaria, por exemplo, a respeitar a propriedade do outro, a intimidade dele, seus segredos, sua liberdade, sua dignidade, sua vida? Ninguém pode responder em seu lugar: essa questão só se dirige a você, mas a você por inteiro. O que você não faz, mas faria, se fosse invisível, decorre menos da moral do que da prudência ou da hipocrisia. Em compensação, o que, mesmo invisível, você continuaria a se impor ou a se proibir, não por interesse mas por dever, só isso é estritamente moral. Sua alma tem a pedra de toque dela. Sua moral tem a pedra de toque dela, em que você julga a si mesmo. Sua moral? O que você exige de você mesmo, não em função do olhar alheio ou de determinada ameaça exterior, mas em nome de certa concepção do bem e do mal, do dever e do proibido, do admissível e do inadmissível, enfim da humanidade e de você mesmo. Concretamente: o conjunto das regras a que você se submeteria, mesmo que fosse invisível e invencível.

É muito? É pouco? Cabe a você decidir. Você aceitaria, por exemplo, se pudesse ficar invisível, mandar condenar um inocente, trair um amigo, martirizar uma criança, estuprar, torturar, assassinar? A resposta depende única e exclusivamente de você; você, moralmente falando, depende única e exclusivamente da sua resposta. Não tem o anel? Isso não o dispensa de refletir, de julgar, de agir. Se há diferença que não seja apenas aparente entre um canalha e uma pessoa de bem, é que o olhar dos outros não é tudo, que a prudência não é tudo. É essa a aposta da moral e sua solidão derradeira: toda moral é relação com o outro, só que de si consigo. Agir moralmente é levar em conta os interesses do outro, por certo, mas “sem que os deuses e os homens saibam”, como diz Platão; em outras palavras, sem recompensa nem castigo possível e sem necessitar para tanto de nenhum outro olhar além do seu mesmo. Uma aposta? Estou me exprimindo mal, já que, mais uma vez, a resposta depende única e exclusivamente de você. Não é uma aposta, é uma opção. Só você sabe o que deve fazer, e ninguém pode decidir em seu lugar. Solidão e grandeza da moral: você vale única e exclusivamente pelo bem que faz, pelo mal que se proíbe fazer, sem nenhum outro benefício além da satisfação de fazer o bem – mesmo que ninguém jamais venha a saber do seu feito.

(...) Você vale exatamente o que você quer.

O que é a moral? É o conjunto do que um indivíduo se impõe ou proíbe a si mesmo, não para, antes de mais nada, aumentar sua felicidade ou seu bem-estar próprios, o que não passaria de egoísmo, mas para levar em conta os interesses ou os direitos do outro, mas para não ser um canalha, mas para permanecer fiel a certa idéia da humanidade e de si. A moral responde à pergunta; “O que devo fazer?” É o conjunto dos meus deveres, em outras palavras, dos imperativos que reconheço legítimos – mesmo que, às vezes, como todo o mundo, eu os viole. É a lei que imponho a mim mesmo, ou que deveria me impor, independentemente do olhar do outro e de qualquer sanção ou recompensa esperadas.

“O que devo fazer?” e não: “O que os outros devem fazer?” É o que distingue a moral do moralismo. “A moral”, dizia Alain, “nunca é para o vizinho”: quem se preocupa com os deveres do vizinho não é moral, é moralizador. Existe espécie mais desagradável? Existe discurso mais inútil? A moral só é legítima na primeira pessoa. Dizer a alguém: “você tem de ser generoso” não é prova de generosidade. Dizer-lhe: “você tem de ser corajoso” não é dar prova de coragem. A moral só vale para si mesmo. Para os outros, a misericórdia e o direito bastam.

Quanto ao mais, quem pode conhecer as intenções, as desculpas ou os méritos alheios? Ninguém, moralmente falando, pode ser julgado, a não ser por Deus, se Deus existir, ou por si mesmo, e isso já constitui uma existência mais que suficiente. Você foi egoísta? Foi covarde? Aproveitou-se da fraqueza do outro, da sua desgraça, da sua candura? Você mentiu, roubou, violentou? Você sabe muito bem, e esse saber de si para consigo é o que se chama consciência, que é o único juiz, em todo caso o único, moralmente falando, que importa. Um processo? Uma multa? Uma pena de prisão? Não passa da justiça dos homens: não passa de direito e polícia. Quantos canalhas em liberdade? Quanta gente boa na prisão? Você pode estar em regra com a sociedade, o que sem dúvida nenhuma é necessário. Mas isso não dispensa você estar em regra consigo mesmo, com sua consciência, e essa é na verdade a única regra.

Quer dizer então que há tantas morais quantos são os indivíduos? De jeito nenhum. E aí está o paradoxo da moral: ela só vale na primeira pessoa mas universalmente, em outras palavras para todo ser humano (já que todo ser humano é um “eu”). Pelo menos é assim que a vivemos. Sabemos perfeitamente, na prática, que há morais diferentes, que dependem da educação recebida, da sociedade ou da época em que as pessoas vivem, dos meios que freqüentam, da cultura com a qual elas de identificam... Não há moral absoluta, ou ninguém tem acesso absoluto a ela. Mas, quando eu me proíbo a crueldade, o racismo ou o assassinato, sei também que não é tão-somente uma questão de preferência, que dependeria do gosto de cada um. É antes de mais nada uma condição de sobrevivência e de dignidade para a sociedade, para qualquer sociedade, em outras palavras para a humanidade ou a civilização.

(...)

Se Deus não existe, tudo é permitido”, diz um personagem de Dostoiévski. Não é verdade, porque, crente ou não, você não se permite tudo: tudo, inclusive o pior, não seria digno de você!

O crente que respeitasse a moral única e exclusivamente para alcançar o Paraíso, única e exclusivamente por temer o Inferno, não seria virtuoso: não passaria de um egoísta prudente. Quem faz o bem única e exclusivamente para a sua própria salvação, é mais ou menos o que Kant explica, não faz o bem e não é salvo. Quer dizer que uma ação só é boa, moralmente falando, se for realizada, como novamente diz Kant, “sem nada esperar por ela”. É aí que entramos, moralmente falando, na modernidade, em outras palavras, na laicidade (no bom sentido do termo: no sentido em que um crente pode ser tão laico quanto um ateu). (...) Não é a religião que funda a moral; é antes a moral que funda ou justifica a religião. Não é porque Deus existe que devo agir bem; é porque devo agir bem que posso necessitar – não para ser virtuoso, mas para escapar do desespero – de crer em Deus. Não é porque Deus me ordena uma coisa que ela é boa; é porque um mandamento é moralmente bom que posso supor que ele vem de Deus. Assim, a moral não proíbe que se creia, ela até leva, segundo Kant, à religião. Mas não depende dela e não poderia se reduzir a ela. Mesmo se Deus não existisse, mesmo se não houvesse nada depois da morte, isso não dispensaria você de cumprir com o seu dever, em outras palavras, de agir humanamente.

 

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